1. A infância como construção histórica
A concepção de criança como ser em desenvolvimento é uma invenção moderna. Até o século XIX, crianças eram vistas como adultos em miniatura ou como trabalho econômico dentro da família. Somente durante a Modernidade, a infância passou a ser compreendida como uma fase distinta, caracterizada pelo crescimento e pela transição rumo à razão e à cidadania.
A partir daí, a infância torna-se objeto de regulação e intervenção: pais e mães são orientados por tratados moralistas, educação formal, psicologia, pedagogia e medicina higienista. Esses campos passaram a estabelecer padrões de “normalidade”, criando regimes de verdade que definem o que espera-se do corpo e da mente da criança — e como os adultos devem agir em relação a ela.
2. Como evoluiu a paternidade
Historicamente, o pai era a autoridade suprema: proprietário da família, símbolo de poder e estabilidade econômica, e praticamente alheio às funções afetivas ou de cuidado.
No século XX, essa hierarquia começou a ruir. A configuração familiar se tornou mais dinâmica e demandou uma redistribuição dos papéis entre pai e mãe. O pai deixou de ser apenas “o provedor” e passou a participar ativamente da vida doméstica, na educação, no cuidado e nos afazeres rotineiros das crianças, ainda que de forma gradual.
Esse novo modelo também surgiu em resposta às consequências percebidas da ausência paterna, como fragilidade emocional, dificuldades cognitivas e comportamentais (notadamente em meninos), além de maior risco de repetência escolar, baixa autoestima e afetividade comprometida.
3. O que significa ser pai hoje
A função paterna contemporânea pode ser compreendida como um conjunto de práticas e significados que favorecem o desenvolvimento integral da criança. Ela se constrói com base em sete pilares:
– Proteção e segurança: o pai estabelece limites que ajudam a criança a se sentir segura frente aos riscos do cotidiano.
– Valorização e atenção: demonstrar interesse real, ouvir, brincar, incluir a criança na sua rotina cotidiana.
– Disponibilidade afetiva: ser um adulto emocionalmente presente, disponível para acolher dúvidas, medos e alegrias.
– Educação e exemplo: ensinar valores, socialização, regras de convivência, não apenas por palavras, mas com ações consistentes.
– Contraponto saudável à mãe: exercer uma autoridade simbólica equilibrada — nem autoritária, nem ausente — complementando e apoiando a função materna.
– Facilitação da inserção social: ajudar a criança a compreender seu papel na comunidade, no grupo de pares e no mundo.
– Criação de resiliência: ensinar que adiar desejos, lidar com frustrações e conviver com limites são parte da vida saudável.
Essas práticas são construídas no vínculo com a criança. Não basta estar fisicamente presente; é necessário ser afetivamente intencional e interativo, reconhecendo e acolhendo a singularidade dela.
4. Os impactos da ausência paterna
Numerosos estudos indicam que a ausência do pai ou uma paternidade negligente está correlacionada com problemas emocionais, cognitivos e comportamentais. Crianças que convivem com pais ausentes tendem a apresentar:
– Maior probabilidade de repetir anos escolares
– Desempenho acadêmico inferior, especialmente em leitura
– Comportamentos agressivos ou dificuldades de socialização
– Baixa autoestima, sentimentos de culpa, tristeza ou melancolia
Além disso, a ausência paterna em casa pode intensificar o impacto negativo de ambientes sociais desestruturados e aumentar o risco da criança seguir caminhos antissociais.
Por outro lado, a presença paterna amorosa, consistente e envolvida contribui para:
– Fortalecer o vínculo de apego seguro
– Fomentar autonomia, curiosidade e confiança
– Servir de modelo simbólico para relações futuras
– Construir autoestima, ética e valores sociais
5. Mudanças sociais e novas configurações familiares
Nas últimas décadas, transformações como maior mobilidade geográfica, diversidade de arranjos familiares, relação conjugal dissolvida por separações e novas formas de parentalidade trouxeram desafios e oportunidades. Em muitas famílias, o pai social ou afetivo não coincide com o pai biológico ou legal — ainda assim, exerce a função paterna de forma significativa.
Por essa razão, algumas vertentes apontam um possível “declínio da paternidade” tradicional, que ainda não encontrou um modelo confortável e legítimo para se exercer de forma plena e reconhecida. Essa crise é visível nas famílias onde a função paterna é terceirizada pelo Estado, por instituições ou até mesmo por especialistas — o que, em parte, representa uma continuidade da lógica paternalista que desloca do lar a autoridade sobre as crianças.
6. Pais em construção, pai como agente
A paternidade moderna requer uma postura ativa, consciente e subjetivamente disponível. Muitos homens se sentem inseguros para ocupar essa função — temem repetir padrões negativos da própria infância, sentem-se incapazes de educar ou de construir uma relação de segurança com a criança. Mas, como mostram autores como Matos, Outeiral e Araújo, a relação com o pai é um ponto central na formação identitária infantil: quando ausente, deixa um vazio que dificulta o desenvolvimento e pode abrir brechas para sintomas diversos ou escolhas desvinculadas.
Portanto, exercer a função paterna implica:
– Desejo verdadeiro de “ser pai” (embora não necessariamente ser pai biológico)
– Abertura para aprender e adaptar-se a cada etapa do desenvolvimento do filho
– Disponibilidade emocional para acompanhar os pequenos nas suas descobertas, medos e conquistas
A mãe tem papel essencial nesse processo, quando reconhece e valoriza o papel do pai, abrindo espaços para que ele cumpra sua função de modo significativo — não como rival, mas como complementador no vínculo infantil.
7. Conclusões e perspectivas para o futuro
A figura paterna tem transitado de provedor distante para cuidador intencional. Esse movimento, mesmo que ainda incompleto, representa uma das transformações mais importantes para a educação afetiva na infância. A função paterna, hoje, exige responsabilidade emocional, investimento contínuo e reconhecimento do impacto que sua presença — ou ausência — causa no desenvolvimento da criança.
Referências:
BENCZIK, Edyleine Bellini Peroni. A importância da figura paterna para o desenvolvimento infantil. Rev. psicopedag. [online]. 2011, vol.28, n.85 [citado 2025-07-23], pp.67-75. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-84862011000100007&lng=pt&nrm=iso>. ISSN 0103-8486.
Hennigen, I.. (2010). Especialistas advertem: o pai é importante para o desenvolvimento infantil. Fractal: Revista De Psicologia, 22(1), 169–184. https://doi.org/10.1590/S1984-02922010000100013
Kuster MO. A importância da função paterna no desenvolvimento da criança. – Revista de Pediatria SOPERJ. 2015;15(1):35-39